terça-feira, 29 de abril de 2014

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Vives na raiz das minhas lágrimas


 

Por vezes vives na raiz das minhas lágrimas. Vives. No estuário escuro onde me nascem rios salgados
que de tão aprisionados pelas margens sabem-se sem esperança de alcançar os sete mares. Sobes-me ou desces-me as colinas e danças-me inevitavelmente na retina. Inevitável e lento, trémulo e periclitante na lágrima retida; trémula, ali, a lágrima por cair, ali de onde o mundo se reflecte pardo e desfocado. Vês como eu, o mundo desfocado e pardo, num porvir absurdo que nos falece antes que seja. Por vezes fazes pequenas ondas no lago dos meus olhos e tremulas ao vento a bandeira da revolta: queres que eu seja tempestade, que tudo apague, que tudo lave, que tudo; mas a lágrima, mareada e sombria, grita e força a grade para rolar livremente pela face. Evito a queda, porque não quero que roles com ela até ao chão e te sujes no sangue que escorre dos meus pés. As caminhadas foram sempre longas e os caminhos pródigos em gumes. Soubesse eu que as lágrimas corriam só em direcção à boca, soubesse eu que as lágrimas em que me habitas corriam sempre em direcção à boca; soubesse eu e soltava-as nessa liberdade de sal aquoso; deixava-te entrar de novo em mim. E de novo, de novo, sempre de novo, deixava que voltasses a ser líquido, quente e terno, recolhido, na raiz das minhas lágrimas.


Olívia Santos

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Saudade

A saudade é um fio de água que se entranha nas paredes da alma, não se sabe onde começa, não se consegue vedar. Infiltra-se mais e mais, silenciosamente, até a alma ser um quarto escuro e húmido. Até a alma ser água, sem no entanto ser rio; ser água, sem no entanto ser mar.

sábado, 5 de abril de 2014

O céu da manhã cai sobre mim
como purpurinas em olhos de criança 
um excesso de luz
anula as sombras 

chuva de lava
a crepitar na minha pele

a tua mão pousada sobre a minha vida

terna e leve 

Olívia Santos 

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Nua



pouco importa que me dispa 
no
canto do quarto onde não chega a luz
se a essa hora, a minha alma inteira

já dorme nua sob o teu olhar

Olívia Santos

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Lembras-te?

Ainda te lembras da cor que tinham os amanheceres sobre a cidade? Do encanto que sempre encontrávamos no silêncio de tudo o que dormia à nossa volta? Lembras-te como os olhares que te ofertava estavam cheios de frases e poemas que te faziam esquecer o esvoaçar das borboletas? Lembras-te quando me seguravas a mão ainda fria de atravessar a madrugada, e pouco a pouco vertias nela a maciez da fruta madura que trazias nos teus dedos?

Lembras-te dos meus gestos? Da minha imaginação exagerada a construir histórias, fazendo deslizar a sombra das mãos pelas paredes? E do adormecer? Lembras-te do nosso adormecer? Dizias que continuavas a ver a minha íris pela persiana transparente dos meus olhos. Dizias que nunca. Essa é a parte que me lembro mais, que me lembro sempre. Sempre. O nunca. Dizias que nunca nós. Dizias que nunca nós em caminhos separados, nunca nós com nós nas nossas bocas. Lembras-te da lua sobre a ponte e outra lua mais longe sobre a torre? Nunca te disse mas essa noite; essa noite talvez fosse presságio, duas luas sob os nossos olhos. Presságio.

Lembras-te das coisas banais das nossas vidas, do arrumar da casa, do dispor dos móveis em forma perpendicular? Dava sorte, dizias. Tocavam-se num canto e não fariam sentido separados. E as músicas? Lembras-te das músicas que se escondiam sonolentas pela casa o dia todo, e se soltavam, loucas, inebriantes, assim que a nossa chave rodava a fechadura?

Ainda te lembras da cor dos amanheceres sobre a cidade? Ainda te lembras do dia em que voámos com as asas de anjo que trouxeste, dizias tu, de outra vida ou dos arredores do céu? Lembras-te das vezes que te arrastava da margem dos meus sonhos, para sonhar sozinha – mas contigo?

Lembras-te do dia, seguido de outros dias, da noite, seguida de outras noites que me chamavas mas era outro nome que eu ouvia?
Olívia Santos

Relógio rubro

Havia oceanos nas palavras que dizias
e histórias de poetas nos ventos de levante

dos teus olhos

(neles era sempre maré cheia)

memórias circulares entre os teus dedos
estradas de fogo a queimar a minha pele

um relógio, rubro

a lembrar a fuga em contumácia - dos segundos

a lembrar a lucidez dos pássaros
que desocupam os seus ninhos antes que os destrua a tempestade

Olívia Santos

Mar

Dor

Deito-me sobre a minha própria dor borrifo-a com gotas que chovem dos meus olhos aliso-a com as minhas próprias mãos como se me fosse tão familiar e íntima como o lençol de linho em que adormeço Olívia Santos

Mãos